O Ponto
Aventura 12+ anos

O filtro da existência

por Fernando Madruga
No princípio, o homem criou o filtro — e viu que era bom. A realidade, imperfeita e cheia de sombras, finalmente podia ser corrigida com um toque. O filtro suavizava olheiras, removia rugas, realçava pores e ilusões.
Com o tempo, a fronteira entre o rosto e o retrato se dissolveu. Ninguém mais sabia quem era, apenas quem parecia ser. A autenticidade virou um filtro mal ajustado: um pouco de verdade, uma dose de saturação e muita luz artificial.
Os espelhos, ofendidos, pediram demissão. Já não eram necessários. A validação agora vinha da tela, e a beleza tornou-se um algoritmo de contraste.
A vida sem filtro passou a causar estranhamento. O natural, vergonha. O imperfeito, censura. O ser humano, insatisfeito com sua versão biológica, começou a editar-se ao vivo — em pixels, em gestos, em verdades.
Mas o filtro, como toda ilusão, cobra caro. Ele não apenas esconde o que é feio — apaga o que é real. E quanto mais polida a imagem, mais opaco o interior.
O ponto, do alto de seu silêncio cósmico, observa: “Eles apagaram a si mesmos para caber na moldura.”
A sociedade do filtro não mente — apenas retoca. E entre um retoque e outro, perde-se o rosto original da humanidade, substituído por uma versão otimizada do vazio.
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